18/03/2025

Desejo por queijo mofado é resposta da sociedade ao excesso de comida ultra processada

“A fascinação pelo mofo marca o fim da sociedade da abundância” disse a filósofa Anne-Sophie Moreau, em uma entrevista ao jornal francês Le Monde sobre seu novo livro “Kefir, compost et bacteries : pourquoi le moisi nous fascine” (Tradução livre: Kefir, compostos e bactérias, porque o mofo nos fascina).  Na busca de entender porque algo tão nojento e repulsivo como micróbios são agora os queridinhos do povo da alimentação saudável, ela aposta que isso é causado pelo medo da morte e do declínio humano atual.

David Asher, canadense pioneiro dos queijos naturais, segurando um pão mofado para fazer queijo de mofo azul Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

Esterilizar, pasteurizar,  plastificar, congelar… Todas essas práticas modernas vieram com a promessa de simplificar a vida, sem imaginar que iam acabar com a diversidade da nossa microbiota intestinal. Pandemia,  crises climáticas, poluição e a emergência dos males da modernidade: alergias, distúrbios autoimunes, doença de Crohn, Alzheimer, parkinson, sem falar no autismo, que acomete agora uma a cada 150 crianças na Europa, ai ai ai. Todas essas tragédias  acendem nas pessoas um amor por bactérias, leveduras e fermentações. Queremos comer as receitas da avó, da bisavó, dos ancestrais. Uma vontade de voltar ao natural e a natureza. E bingo! O queijo de leite cru feito com fermentos naturais é o alimento mais vivo que existe, um bilhão de bactérias por miligrama.

Geotrichum candidum colonizando coalhada Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

Na busca por uma “ética da fermentação”, Anne-Sophie estudou áreas da vida em que micróbios estão sendo utilizados: desde cremes cosméticos, que transformam seu rosto em uma porcelana branca e lisa como a casca de um queijo roquefort, até a tecnologia que cria bifes no laboratório. E outras mais alternativas, como redes de pessoas que querem usar os micróbios de forma caseira, escolhendo fazer queijo com culturas lácteas nativas, que brotam nas roças.  Nessas redes sociais de solidariedade, “um fermento ou um grão de kefir não se compra, se troca”, disse Anne-Sophie. E a vida vai se multiplicando…

Burgueses trocaram chucrute por molhos

A comida europeia medieval era muito mais baseada em fermentação. Foram os burgueses, nas cidades, que substituíram esses costumes por uma comida mais fresca, com muitos molhos. “A diversidade de chucrutes, de legumes lacto-fermentados e carnes secas e fermentadas severamente diminuiu, porque era associada à imagem de camponeses. Isso levou a um empobrecimento da nossa microbiota intestinal. O único alimento fermentado que permaneceu foi o queijo”, conta Marc André Selosse, biólogo especialista na vida dos solos que, pode parecer bizarro, mas agora só fala em queijos nas suas conferências lotadas em Paris, para um público que adora beber kombucha em garrafinhas design, vendidas como bebida viva.

Massa filada fermentada naturalmente Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

Marc-André alerta: até o queijo francês foi enquadrado nessa lógica de empobrecimento da microbiodiversidade, pois a maioria do leite cru hoje na França é pobre em bactérias, mortas por excesso de desinfetantes nas salas de ordenha e de fabricação. “Para um queijo ter tipicidade, ou seja, sabores e odores especiais, ele precisa ser inoculado com  bactérias cultivadas em laboratório, porque esses micróbios que dão gosto aos queijos não estão mais naturalmente nos leites. A vida moderna destruiu uma grande diversidade de micróbios, substituídos por outros mais conhecidos, obviamente, em número limitado, pois cada um deles custa caro”, ele explica.

Colocar a biodiversidade no centro das nossas entranhas

“No Brasil, precisamos estar atento para não acontecer como na França”, alerta João Bello, curador de Belo Horizonte e membro da SerTãoBras, associação que defende o consumo de queijos de leite cru no Brasil. João foi além e lançou o conceito do queijo “cru-cru”: leite cru e fermentos nativos do ambiente da fazenda. “Esse é o verdadeiro e autêntico queijo artesanal, que têm sabores únicos de uma roça local”, disse ele, que desenvolveu um processo de lavagem para favorecer leveduras naturais que dão sabores intensos ao seu queijo bello.

Lavagem de queijo para favorecer leveduras Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

Em outros países, como Canadá e Itália, esses queijos cru-cru estão sendo chamados simplesmente de queijos naturais. O canadense David Asher é considerado o pioneiro das receitas de queijos naturais, autor de dois livros sobre o assunto:  The Art of Natural Cheesemaking, de 2015 e Milk into Cheese, mais recente, lançado em julho de 2024.

Estômago seco do bezerro para fazer coalho Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

“Essas técnicas naturais ajudam os produtores a realmente fazerem queijos mais expressivos. Permitem que eles se reconectem com seu leite e sua agricultura”, disse ele no vídeo de divulgação dos dois cursos que vai dar no Brasil em março, um para iniciantes em Belmiro Braga, Minas Gerais, e outro avançado em Bofete-SP. O curso é voltado não somente para produtores, mas pessoas que querem fazer queijo em casa e se iniciar na arte dos queijos e lácteos naturais.

Cesto de palha para enformar queijos naturais Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

“David foi minha primeira inspiração no mundo dos queijos” confessa Carolina Vilhena, da Belafazenda, que vai hospedar o curso para alunos avançados na sua queijaria. Ela é entusiasta dos queijos naturais, mas faz somente para a família. Parou de vender seus queijos de leite cru porque seu rebanho leiteiro não é certificado livre de tuberculose e brucelose, então ela vende queijos pasteurizados feitos com fermentos do comércio. “Nossa fazenda é grande e tem gado de corte, eu não tenho como certificar todos os animais e a legislação não ajuda a certificar só o rebanho leiteiro” justifica.

Queijo sustentado por cinta de madeira Foto: Carolina Vilhena/Bela Fazenda

 

Vai ser a segunda vez que David Asher vem ao Brasil. Na primeira, em 2018, ele deu cursos na Serra da Canastra e em São Paulo (fotos que ilustram esse texto). O mais legal depois desses cursos foi ver um monte de queijos novos aparecendo, com sabores e aromas únicos. Outra característica desses queijos naturais é que não estão dando sopa em qualquer prateleira de supermercado: são distribuídos por queijistas, em lojas, para um público exigente, que gosta de ser aconselhado. Nem tem pra t0d0 mundo. Também custam mais caro, mas esperamos que a popularização dessas técnicas vai ajudar a democratizar o queijo natural, quem sabe um dia, vai ser naturalmente desgourmetizado…

 

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